Registros Históricos
O Memorial participou, em novembro de 2020, das ações promovidas pela Seção Judiciária do Rio Grande do Sul para marcar o Mês da Consciência Negra com a apresentação de dois processos judiciais. Transcorridos em períodos históricos bem distantes, os dois processos contêm registros sobre questões raciais. Hoje, apresentamos um habeas corpus, impetrado em 1897.
Rupturas e Permanências
A escravidão foi abolida definitivamente ainda no Império, no ano de 1888. Entretanto, muitas das rupturas características deste regime permaneceriam presentes ao longo da República, especialmente em seus primeiros anos, quando a distância histórica entre estes “dois mundos” ainda era pequena. Em 1897, o jovem Nadário Ribeiro, de 14 anos de idade, foi recrutado contra sua vontade para prestar serviço militar no Batalhão de Infantaria de Linha. Mesmo abaixo da idade e doente – como já havia sido alegado -, o menor, ainda assim, fora retido. Sua soltura foi possível mediante uma ação de habeas corpus movida por sua mãe, Paulina Rebello, mencionada nos autos como “ex-escrava”. O Diretor Geral da Instrução Pública escreveu ao juiz do caso, João Francisco Poggi de Figueiredo, mencionando que confirmava a doença e que conhecia Nadário muito bem, pois sua mãe fora escrava de pessoa de sua família.


Porto Alegre tem sua origem e desenvolvimento intrinsecamente ligados à mão de obra escrava. Durante alguns períodos do século XIX, os cativos representavam quase 50% do total da população da capital. A abolição da escravidão em Porto Alegre antecede a Lei Áurea, concedendo a liberdade aos cativos remanescentes já no ano de 1884. Ainda assim, os reflexos deste sistema estiveram presentes durante muito tempo no período republicano.

Foto: Virgílio Calegari, década de 1890. Acervo do Museu de Porto Alegre Joaquim Felizardo
Dentro dos movimentos ocorridos no Rio Grande do Sul, durante a República, essas continuidades também se fizeram evidentes. Na foto abaixo, um soldado voluntário negro cavalga descalço. Desde o Império, os sapatos, assim como guarda-chuvas e outros acessórios, eram associados à ideia de liberdade, sendo vedados às pessoas negras que os utilizassem.

Fonte: PENNA, Rejane (org.). O tempo e o Rio Grande nas imagens do Arquivo Histórico do RS. Porto Alegre, IEL:AHRGS, 2011, p. 142.

Quilombo Família Silva
Dando continuidade à participação do Memorial nas ações desenvolvidas na SJRS em comemoração ao Mês da Consciência Negra, apresentamos a ação de manutenção de posse impetrada em 2005, em favor da Comunidade Urbana Quilombola Família Silva.
Impetrada pela Fundação Cultural Palmares e o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), a ação discutiu a concessão definitiva da posse de uma área ocupada pela Família Silva, no bairro Três Figueiras, em região valorizada de Porto Alegre. Segundo os autores, a Família Silva foi reconhecida como comunidade remanescente de quilombos pela Fundação Cultural Palmares e recebeu título de reconhecimento de posse do Incra em nome da Associação Comunitária Kilombo da Família Silva, entretanto os proprietários ajuizaram ação reivindicatória perante a Justiça Estadual, que se encontrava na iminência da execução da sentença de despejo.
Com base em documentos como a Ata de Assembleia de Fundação da Associação Comunitária Quilombo da Família Silva e o Laudo Antropológico que concluiu serem os ocupantes do local descendentes de escravos, o juiz deferiu liminarmente o pedido de manutenção possessória, decisão confirmada posteriormente pela sentença, proferida em maio de 2009.
Segundo o Laudo antropológico e histórico, os membros daquela coletividade eram descendentes de negros oriundos do interior do Rio Grande do Sul e que residiam naquela área há mais de sessenta anos; na época da chegada de seus ascendentes, era uma zona rural, pouco habitada e afastada do centro de Porto Alegre. Pode se dizer que “a identidade de “remanescente de quilombo” evocada pelos integrantes da “Família Silva” está relacionada com a luta que eles travam e outrora seus antepassados travaram para constituir um território próprio e obter as condições mínimas de sobrevivência de forma autônoma” (Laudo, página 118 do processo judicial).

Crédito: Nestor Tipa Júnior
